Entrevista dada ao jornal francês Présent pelo padre Barthe,
ele é o capelão da Peregrinação Summorum Pontificum a Roma.
A eleição do primeiro Papa de nome Francisco está a ser vista como uma
grande mudança. É essa também a sua opinião?
- Fundamentalmente, não. Infelizmente, não. Eu quero dizer
que o contexto dessa eleição é o de uma crise, sem nenhum precedente na história
da Igreja, da fé, da transmissão da fé, da catequese, crise que não cessa de
crescer. Ela está ligada a um desmantelamento da liturgia romana que a reflete
e a acentua. Ela se propaga, além disso, por uma secularização (e um
apagamento) do clero e dos religiosos, e uma perda espantosa em todo mundo do
sentido do pecado, que banaliza, em resumo, a secularização do ponto de
vista moral. Falava-se antigamente de crentes não praticantes. Ora, hoje, em
França e num certo número de países do Ocidente, a prática tornou-se residual
e, além disso, os praticantes que restam estão longe de serem todos crentes. No
resto do mundo, principalmente nos países onde o número de padres é grande e
mesmo crescente, a alta da heterodoxia e da ausência da formação teológica é
mais que angustiante. Essa tempestade que sacode a Igreja no seio da ultramodernidade
e de um mundo agressivamente secularizado reduz consideravelmente o
acontecimento da eleição pontifical de 13 de Março, aliás importante. Mas a
realidade maciça permanece a mesma: o barco tem rombos e recebe água por todos
os lados, para citar o Papa precedente.
- Quem é o Papa
Francisco?
- Ele nasceu em 1936 na Argentina, de uma família de
imigrantes italianos (tem 76 anos, ou seja, em alguns meses a mesma idade que
tinha João XXIII quando eleito Papa). Ele entrou nos jesuítas, foi provincial da
sua ordem na Argentina, de 1973 a 1979. João Paulo II nomeou-o bispo auxiliar
de Buenos Aires em 1992, depois coadjutor (com direito de sucessão) em 1997.
Ele torna-se arcebispo da capital da Argentina em 1998, cardeal em 2001 e o verdadeiro
chefe da Igreja da Argentina.
Mas, creio que a sua pergunta verte sobre o perfil
eclesiástico. Formalmente é um puro produto do molde inaciano, pelo menos do
molde inaciano para superiores. O novo Papa é um homem de personalidade muito
forte, tendo um poderoso sentido de autoridade. Já compararam a sua
personalidade com Pio XI mas, do meu ponto de vista, eu o compararia antes ao
Cardeal Benelli, que dominou longo tempo a Cúria de Paulo VI.
Jesuíta muito fiel aos seus deveres, ele é um asceta, que se
levanta ao nascer do dia, faz todos dias uma hora de oração. Tendo uma enorme
potência de trabalho, uma memória espantosa, uma inteligência subtil, ele tem
uma notável capacidade de controlo direto daquilo que ele comanda (praticamente
nunca teve secretário particular). Dito isto, é mais difícil governar a Igreja
universal do que a Igreja da Argentina, sobretudo aos 76 anos, vivendo desde os
21 anos com praticamente um pulmão só, e estando em todo caso de fato cansado
de uns anos para cá. Quanto a endireitar uma situação eclesial, quem o poderia
fazer hoje em dia? O Papa Francisco deixa uma diocese, aquela de Buenos Aires,
afligida por uma grave crise de vocações e minada pela secularização, à imagem
de tantas dioceses em terras que pertenceram antigamente à cristandade.
É um intelectual, um homem culto, e que sabe eminentemente
vulgarizar: ele se esforça por falar com uma grande simplicidade; ele se
obrigava mesmo, na Argentina, a expressões populares. Os seus ataques repetidos
contra uma religião diluída são muito consistentes. Isso quer dizer também que
ele sabe perfeitamente comunicar, receio que o seu caráter impulsivo lhe possa pregar
algumas partidas. Ele presta a maior atenção às nomeações que faz, como comprovou nos postos de responsabilidade que
ele exerceu como provincial dos jesuítas e como primaz da Argentina, e
“fazedor” de bispos desse país. A sua importância moral cresceu ainda após
2005, já que se soube rapidamente que ele beneficiou, por ocasião do conclave
que elegeu Joseph Ratzinger, de todos os votos da “oposição” ao decano do
Sagrado Colégio de então. Na Argentina, ele era considerado como quase Papa,
aquele que o teria sido se, diante dele, não se tivesse encontrado o Prefeito
do antigo Santo Ofício. Deve-se dizer também que salvo pela intensidade da vida
espiritual, a sua personalidade é muito diferente daquela do Papa precedente.
- É portanto um
“progressista”?
- Não! O Cardeal Bergoglio tem uma personalidade muito forte
típica da ordem dos jesuítas, tal como o Cardeal Martini, que foi dado como
papabile até ter sido atingido pelo doença de Parkinson. Do mesmo modo que
seria preciso compreender que o Papa Ratzinger não era um “tradicionalista”,
mas um homem de “centro-direita” – perdoem-me essa nomenclatura bastante
inadequada mas que tem a vantagem da rapidez – muito atento a todo tipo de
reivindicações tradicionais, sobretudo do ponto de vista litúrgico, é preciso
entender bem que o novo Papa não é um “progressista”.
Por isso é preciso estudar um pouco seu perfil político e
social. A Argentina é um país que foi marcado por um fenómeno político muito
específico, o peronismo, do qual não sei se se pode fazer entrar pura e
simplesmente na categoria dos populismos, ao estilo do peronismo, que ia do
fascismo a uma esquerda muito avançada. Jorge Mario Bergoglio era um peronista
engajado de centro direita, um católico peronista, pode-se dizer. Ele foi
membro desde o fim dos anos 1960 (quer dizer, mais ou menos na data da sua
ordenação) de uma organização peronista chamada OUTG (Organização Única da
Transferência Geracional), que não se engajava na luta armada, mas que se
consagrava à formação de jovens líderes desse movimento extremamente social,
ainda que radicalmente hostil ao marxismo. No fim de 1974, quando era
provincial dos jesuítas há um ano, ele confiou o controlo da Universidade Jesuíta
del Salvador a antigos membros dessa organização, que acabava de ser
dissolvida. Critica-se frequentemente a Jorge Mario Bergoglio e o seu apoio à
junta militar que afastou Isabel Peron em 1976. É preciso compreender que ele
foi daqueles que quiseram preservar a herança social do peronismo. A
reformulação que ele operou no percurso desde as entrevistas que deram lugar ao
famoso livro, El Jesuíta, publicado em 2010, é evidentemente uma obra de
circunstância, mas ela não é falsa na insistência que ele usa para afirmar que a
sua linha sempre foi a preocupação dos pobres, a organização em seu favor das
estruturas sociais e a evangelização nesse sentido.
- Parece ter sido mal
visto pelos governantes argentinos atuais que poderiam estar na origem das acusações
sobre a sua colaboração com o regime de Videla.
- De fato, a sua atitude muito crítica diante do governo
“burguês” dos Kirchner dirigia-se ao mesmo tempo sobre a fraqueza da política
social e sobre o questionamento do fundamento católico da Argentina (ver, por
exemplo, o seu livro Ponerse la patria al hombro, Tomar a pátria sobre os
ombros, 2004) com tomadas de posição bem conhecidas contra o aborto e o
casamento homossexual. A sua defesa da moral da família e da vida foi muito
decidida. Poder-se-ia sonhar com uma revalorização da Humanae Vitae, encíclica
muito esquecida hoje, e com uma catequese denunciando a contracepção? As suas
declarações sobre a vida na Argentina foram mais nacional-católicas, pode dizer-se,
que a dos bispos franceses, mas também mais tímidas quanto à presença nas
manifestações. Poder-se-ia até mesmo sustentar que o Cardeal de Buenos Aires se
tornou na Argentina uma potência de inspiração alternativa de centro esquerda.
Assim, em todo esse percurso, pode-se dizer que ele passou do
centro direita do peronismo ao centro esquerda do pessoal eclesiástico, onde o
situam sua eleição “perdida” de 2005 e das suas afirmações em El Jesuita. …
Para responder de outra maneira a sua questão anterior,
poder-se-ia dizer que a eleição de Jorge Mario Bergoglio ao Sumo Pontificado é
semelhante ao que seria a eleição de Andre Vingt-Trois, mas com afinidades mais
“liberais” que as do Cardeal de Paris, como a proximidade com o Cardeal Hummes,
que foi arcebispo de São Paulo e Prefeito da Congregação para o Clero, ou com o
Cardeal Kasper.
- Poder-se-ia dizer
então que ele é “conciliar”?
- Seria ainda necessário especificar, pois o leque dos
conciliares é aliás ainda maior do que o dos peronistas.
Conciliar e talvez mesmo ultra conciliar, o novo Papa o
é, em matéria de ecumenismo e de relações com as religiões não cristãs, ou pelo
menos com o judaísmo. …Ele
não é, por exemplo, muito exigente pelas exegeses bíblicas ou pelas
eclesiologias heterodoxas de certos confrades jesuítas. Ele é aliás preservado
disso pelo seu modo de funcionamento teológico muito simples. A sua teologia é
espiritual e prática. É talvez aqui que vai aparecer uma dificuldade: é uma
banalidade dizer que o último concílio produziu um enorme terramoto teológico,
alguma coisa de muito indefinível que é preciso defender ativamente, ou ao
menos assumir, ou então “interpretar” ou ainda ultrapassar. As duas últimas
hipóteses parecem excluídas para ele, as duas primeiras implicam, ao seu nível
de responsabilidade, em poder “manter a rota”.
Evidentemente, o novo Papa responderá a um desejo de
reativação da colegialidade episcopal reclamada por uma boa parte do
episcopado. Mas esse é um dos paradoxos desta eleição, como observava
Jean-Pierre Denis, de La Vie: os cardeais quiseram ao mesmo tempo uma reforma
da Cúria – o que quer dizer concretamente a retoma de um governo forte – e mais
descentralizado. É um pouco contraditório. Na minha opinião, a anarquia
intrínseca à situação pós-conciliar se encarregará de contrabalançar o que a
autoridade romana, sendo “conciliar”, queira fazer de muito forte.
- E a liturgia? E o
Motu Proprio? E a Fraternidade São Pio X?
- É preciso ver. É mais que evidente que o novo Papa tem uma
sensibilidade litúrgica muito diferente daquela do Papa precedente. Antes da
abertura do Conclave, nos últimos dias, eu segui com atenção um jornal italiano
chamado Il Fatto Quottidiano, que in extremis, torpedeava o papabile delfim de
Bento XVI, Angelo Scola, Arcebispo de Milão. Aliás, esse jornal publicou um
artigo sobre o tema: “Os cardeais não querem de modo algum um papa lefebvrista”.
É preciso entender esse adjetivo à italiana: favorável a um “retorno”
litúrgico. Em outras palavras, a “reforma da reforma” vinda do alto, aquela do
Papa vai estacionar. Resta a “reforma da reforma” vinda da base, dinamizada
pelas celebrações de missas tradicionais, que podem ser travadas, mas que é
impossível de sufocar, como se podia fazer nos “anos de chumbo”.
Além disso, o novo Papa é um político inteligente,
pragmático nas suas alianças, complexo,
secreto, e que gosta de surpreender. A Missa de Entronização prova
isso. Como de resto ele não tem, no momento, oposição séria pela direita (essa
é uma das lições desse surpreendente conclave: o ratzinguerismo puro, que já
tinha mostrado uma grande fraqueza, como que evaporou), ele pode permitir-se gestos
em direção do mundo tradicional em sentido largo: aquele dos padres
identitários, as comunidades conservadoras, um mundo que pesa na Itália, na
França, nos Estados Unidos e em outros lugares. Será que ele pode sentir o
descompasso entre os altos responsáveis eclesiásticos e a expectativa daquilo
que se chamou o “novo catolicismo”?
- Talvez, por outro
lado, o senhor tenha “luzes” sobre a maneira o que se produziu nesta eleição,
que apanhou todo o mundo de surpresa?
- Ninguém tinha previsto isso entre os analistas e
comentaristas. Então, o que aconteceu? Se acreditarmos nos jornais mais bem
informados, e se tomarmos as confidências indiretas dos cardeais, parece que,
desde o primeiro escrutínio, os partidários do Cardeal Scola, o candidato com o
melhor currículo entre os papabili da continuidade ratzingueriana, constataram
que ele estava bem abaixo dos cerca de quarenta votos de partida que eles
esperavam. Terão se reportado ao Cardeal Erdò, de Budapeste? Logo saberemos.
Mas, por outro lado, viu-se que os promotores curiais de uma candidatura “de
mudança”, entre outros os Cardeais Sodano, Sandri, Re, a “velha Cúria”, como se
diz, aliados ao Cardeal Bertone, tinham trocado a candidatura do Cardeal
Scherer, de São Paulo por aquela bem mais eficiente do Cardeal Bergoglio e que
se uniram, entre outros, os cardeais americanos. O segredo tinha sido
cuidadosamente guardado. O golpe teatral tem algumas semelhanças com
aquele de outubro de 1962, nos primeiros dias do Concílio Vaticano II.
Do mesmo modo que, na época, a Cúria palaciana desmoronou como por um sopro,
também desapareceram, oito anos de “restauração” ratzingueriana. Em todo caso,
no Sacro Colégio. Note bem que certo número de promotores da eleição do novo
Papa sabe muito bem que ele não lhes servirá de instrumento. Eles fazem lembrar
o Príncipe Salina, do Guepardo, que salva aquilo que pode do fogo: “Para que
tudo fique como antes, é preciso que tudo mude”.
Tudo muda? Verdadeiro ou falso, isso foi sentido, vivido e
explicado assim em campo, principalmente pela mídia, que só destacam as coisas
da Igreja aquilo que lhes convém. Para continuar a metáfora com o Vaticano II,
poder-se-ia dizer que houve o Concílio e o “espírito do Concílio”, que
amplificou o movimento inovador, há o risco de vermos o Papa Francisco e o
“espírito do Papa Francisco”, que vai tentar amplificar a evolução.
- Então o senhor está
optimista ou pessimista?
- Eu não tenho que ser nem um nem outro, como se eu me
colocasse acima disso. Bem entendido, eu não escondo que eu lamento o fato de
que a época precedente parece fechar como um parêntese. Mas eu não acredito de
nenhum modo que estamos a voltar aos anos mais “conciliares” do ponto de vista
litúrgico, do espírito do clero, estc. E depois, uma vez mais, a “purificação”,
aquela das contas do IOR, o banco vaticano, ou aquela das rocambolescas histórias
de “vazamentos” não é o verdadeiro problema. O verdadeiro problema,
colossal, é o da situação do catolicismo, cinquenta anos depois do
Vaticano II: ela é catastrófica.
E portanto, mesmo se todos os bispos do
mundo abandonassem carro e motorista e tomassem o metro ou a bicicleta, isso
não mudaria nada disso.
Mas no fundo, a
vítima do que acaba de acontecer poderia bem ser a “hermenêutica da
continuidade”. Ora, pode-se observar que a tentativa à qual presidia Joseph
Ratzinger desde o “Colóquio sobre a Fé” de 1985, embora permitindo profundos
questionamentos muito promissores, tinha também o inconveniente do bloqueio
sobre uma linha conservadora. Bom, agora, nós nos encontramos diante do
Concílio, em pessoa. Nós nos encontramos diante da reforma litúrgica, com ou
sem “abusos”, pouco importa, sem véu, diante da reforma litúrgica pura e
simples. E a verdadeira discussão pode continuar sobre os pontos que apresentam
dificuldades, educadamente, é verdade, mas diretamente. Você está a ver, mais uma
vez, vão acusar-me de ser muito otimista…
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Fonte: Revue Item via Tradinews
Entrevista concedida a Olivier Figueras, publicada no n.
7819 de sábado 23 de Março de 2013.
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